18 de abril de 2007

Jurisprudência – Supremo Tribunal Federal

EMENTA

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. BEM DE FAMÍLIA. PENHORA. DECORRÊNCIA DE DESPESAS CONDOMINIAIS. 1. A relação condominial é, tipicamente, relação de comunhão de escopo. O pagamento da contribuição condominial [obrigação propter rem] é essencial à conservação da propriedade, vale dizer, à garantia da subsistência individual e familiar – a dignidade da pessoa humana. 2. Não há razão para, no caso, cogitar-se de impenhorabilidade. 3. Recurso extraordinário a que se nega provimento. (STF – RE nº 439.003 – SP – 2ª Turma – Rel. Min. Eros Grau – DJ 02.03.2007)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Ministro Celso de Mello, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em conhecer do recurso extraordinário, mas negar-lhe provimento, nos termos do voto do Relator.

Brasília, 6 de fevereiro de 2007.

EROS GRAU – RELATOR

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO Eros Grau: O debate que se trava nestes autos diz respeito à constitucionalidade do artigo 3º, IV, da Lei n. 8.009/90, que possibilita a penhora de bem de família em decorrência de despesas condominiais.

2. O 2º Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo manifestou entendimento segundo o qual “sendo a execução por despesas ‘propter rem’, sentido não há em proclamar a impenhorabilidade da unidade que as gerou, solução que tenderia a privilegiar o condômino que, às custas da massa, faz uso da coisa comum” [fl. 171].

3. A recorrente sustenta que esse provimento judicial violou o disposto nos artigos 5º, XXVI, e 6º da Constituição do Brasil.

4. Alega que a exceção contida no inciso IV do artigo 3º da Lei n. 8.009/90 “não ampara a penhora feita, pois ele não compreende as despesas de condomínio” [fl. 195].

5. Afirma, ainda, que o direito à moradia, garantido pelo artigo 6º da Constituição do Brasil, “não pode ser subtraído por uma lei infraconstitucional” [fl. 195].

6. Requer o provimento do recurso extraordinário.

7. O Ministério Público Federal, em parecer de fls. 222/228, opina pelo desprovimento do recurso, tendo em vista que “[…] a manifestação do Poder Constituinte Derivado Reformador, quando da elaboração da EC n. 26/2000, que ampliou o elenco dos conhecidos direitos sociais, elevando a moradia ao status de direito constitucional, não teve o condão de alterar as regras excepcionais à impenhorabilidade do bem de família, proclamadas pelo art. 3º, incisos, da Lei 8.009/90”.

É o relatório.

VOTO

O SENHOR MINISTRO Eros Grau (Relator): No RE n. 407.688 debatia-se a penhora do imóvel residencial do fiador, seu único bem imóvel, em contrato de locação. Fiquei vencido, votando pela impenhorabilidade. Aqui a situação é diversa.

2. Permaneço convencido de que a impenhorabilidade do imóvel residencial de propriedade do devedor instrumenta a proteção do indivíduo e sua família quanto a necessidades materiais, de sorte a prover à sua subsistência. Aí, enquanto instrumento a garantir a subsistência individual e familiar —– a dignidade da pessoa humana, pois —– a propriedade consiste em um direito individual e cumpre função individual[1]. Como tal é garantida pela generalidade das Constituições de nosso tempo. A essa propriedade, aliás, não é imputável função social; apenas os abusos cometidos no seu exercício encontram limitação, adequada, nas disposições que implementam o chamado poder de polícia estatal.

3. Ocorre que a impenhorabilidade protege o titular do bem de família no âmbito da execução das relações de intercâmbio e, no caso destes autos, não há relação de intercâmbio entre os condôminos, porém uma relação de comunhão de escopo.

4. A distinção entre os contratos de intercâmbio e os contratos de comunhão de escopo[2] foi equacionada por von IHERING, em seu monumental Der Zweck im Recht.[3] Nos contratos de intercâmbio cada parte persegue os seus próprios interesses; quanto mais desvantajosa for a compra para o comprador, mais vantajosa será para o vendedor, e vice-versa; a política de cada parte pode ser sumariada na seguinte frase: o prejuízo dele é o meu lucro (sein Schaden mein Gewinn). Nos contratos de comunhão de escopo — von IHERING referese aos contratos de sociedade — os interesses dos contratantes são paralelos. Se um dos contratantes sofre prejuízo, os outros também o suportam. Do espírito de solidariedade de interesses que os caracteriza, o lema: a vantagem dele é a minha vantagem, minha vantagem é a sua vantagem (sein Vorteil mein Vorteil, mein Vorteil sein Vorteil).

5. A distinção, em verdade, fora já discernida por GRÓCIO, no século XVII, como observa ASCARELLI[4]: os contratos de intercâmbio dirimunt partes, os de comunhão de escopo communionem adferunt. Se nos contratos de intercâmbio o elemento fundamental é o sinalagma — – vínculo de recíproca dependência entre as obrigações do contrato bilateral — na associação, como na sociedade e no consórcio, o elemento fundamental é o escopo (objetivo) comum[5]. Daí a observação, ainda de von IHERING[6]: o contrato de intercâmbio tem por pressuposto a diversidade, enquanto que o contrato de sociedade — contrato de comunhão de escopo — a identidade de objetivo.

6. A relação condominial é, tipicamente, relação de comunhão de escopo. O pagamento da contribuição condominial [obrigação propter rem] é essencial à conservação da propriedade, vale dizer, à garantia da subsistência individual e familiar — a dignidade da pessoa humana, pois.

7. Não há razão para, no caso, cogitar-se de impenhorabilidade.

Nego provimento ao recurso extraordinário.

DECISÃO

A Turma, por votação unânime, conheceu do recurso extraordinário, mas lhe negou provimento, nos termos do voto do Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Senhor Ministro Joaquim Barbosa. 2ª Turma, 06.02.2007.

Presidência do Senhor Ministro Celso de Mello. Presentes à sessão os Senhores Ministros Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Joaquim Barbosa e Eros Grau.

Subprocurador-Geral da República, Dr. Francisco Adalberto Nóbrega.

Carlos Alberto Cantanhede – Coordenador.

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[1] Vide meu A ordem econômica na Constituição de 1988, décima primeira edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2.006, págs. 234 e ss

[2] Vide meu Licitação e contrato administrativo, Malheiros Editores, São Paulo, 1.995, págs. 91-92.

[3] Der Zweck im Recht. Zweite Umgearbeitete Auflage, Erster Band. Leipzig, Druck und Verlag von Britkopp & Härtel, 1884, págs. 212-213.

[4] Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado, 2a ed., Saraiva, São Paulo, 1.969, pág. 255.

[5] Vide FÁBIO KONDER COMPARATO, Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial, Forense, Rio de Janeiro, 1978, pág. 137 e Novos Ensaios e Pareceres de Direito Empresarial, Forense, Rio de Janeiro, 1981, pág. 44.

[6] Ob. cit., pág. 208.