27 de março de 2007

Jurisprudência – Supremo Tribunal Federal

EMENTA

FIADOR. Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência. Execução. Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de moradia, previsto no art. 6º da CF. Constitucionalidade do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009/90, com a redação da Lei nº 8.245/91. Recurso extraordinário desprovido. Votos vencidos. A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 23 de março de 1990, com a redação da Lei nº 8.245, de 15 de outubro de 1991, não ofende o art. 6º da Constituição da República. (STF – RE 407.688-8/SP – Tribunal Pleno – Rel. Min. Cezar Peluso – DJU 1 13.10.2006)

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Senhor Ministro NELSON JOBIM, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, em conhecer e negar provimento ao recurso, nos termos do voto do relator, vencidos os Senhores Ministros EROS GRAU, CARLOS BRITO e CELSO DE MELLO, que lhe davam provimento. Votou o Presidente, Ministro NELSON JOBIM. O Ministro MARCO AURÉLIO fez consignar que entendia necessária a audiência da Procuradoria, tendo em vista a questão constitucional.

Brasília, 08 de fevereiro de 2006.

CEZAR PELUSO – RELATOR.

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – (Relator): Trata-se de recurso extraordinário contra acórdão do antigo Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, que negou provimento a agravo de instrumento interposto pelo ora recorrente. À base do agravo está decisão em que o juiz da causa indeferiu pedido de liberação do bem de família do recorrente, objeto de constrição em processo executivo com fundamento na exceção legal à regra da impenhorabilidade de tais bens, nos termos do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 29.03.1990, pois o devedor executado ostenta a condição incontroversa de fiador em contrato de locação (fls. 117-130).

O acórdão está assim ementado:

“Locação – Despejo – Execução – fiador – Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado – Constrição do seu imóvel residencial – Admissibilidade – Previsão da atual lei inquilinária – direito de moradia – norma do art. 6º da CF, ampliada pela Emenda nº 26/2000 – Regulamentação – Ausência – Recurso desprovido” (fls. 110).

Inconformado, o fiador interpôs recurso extraordinário. Como apontado na decisão que o admitiu na origem, “cinge-se a controvérsia em saber se a penhorabilidade do bem de família do fiador de contrato de locação persiste, ou não, com o advento da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, que ampliou a disposição do artigo 6º da Constituição Federal, incluindo a moradia entre os direitos sociais” (fls. 203).

É o relatório.

VOTO

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – (Relator): Tenho por inconsistente o recurso.

Não me parece sólida a alegação de que a penhora do bem de família do recorrente violaria o disposto no art. 6° da Constituição da República, que, por força da redação introduzida pela EC nº 26, de 15 de fevereiro de 2000, não teria recebido a norma do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 29.03.1990, a qual , com a redação da Lei n° 8.245, de 18 de outubro de 1991, abriu exceção à impenhorabilidade do bem de família.

A regra constitucional enuncia direito social, que, não obstante suscetível de qualificar-se como direito subjetivo, enquanto compõe o espaço existencial da pessoa humana, “independentemente da sua justiciabilidade e exeqüibilidade imediatas”, sua dimensão objetiva supõe provisão legal de prestações aos cidadãos, donde entrar na classe dos chamados “direitos a prestações, dependentes da actividade mediadora dos poderes públicos”.[1]

Isto significa que, em teoria, são várias, se não ilimitadas, as modalidades ou formas pelas quais o Estado pode, definindo-lhe o objeto ou o conteúdo das prestações possíveis, concretizar condições materiais de exercício do direito social à moradia. Ao propósito dos direitos sociais dessa estirpe, nota a doutrina:

“A multiplicidade de opções que se registra no âmbito da atividade prestacional social do Estado tende a ser, em tese, ilimitada e constitui, por si só, instigante tema para uma reflexão mais aprofundada. Mesmo assim foram efetuadas diversas tentativas de sistematizar as prestações sociais estatais relevantes para a problemática dos direitos sociais, dentre as quais destacamos – pela sua plasticidade e abrangência – a proposta formulada pelo publicista germânico Dieter Murswiek, que dividiu as prestações estatais (que podem, em princípio, constituir em objeto dos direitos sociais) em quatro grupos:

a) prestações sociais em sentido estrito, tais como a assistência social, aposentadoria, saúde, fomento da educação e do ensino, etc; b) subvenções materiais em geral, não previstas no item anterior; c) prestações de cunho existencial no âmbito da providência social (Daseinsvorsorge), como a utilização de bens públicos e instituições, além do fornecimento de gás, luz, água, etc.; d) participação em bens comunitários que não se enquadram no item anterior, como, por exemplo, a participação (no sentido de quotaparte), em recursos naturais de domínio público.

O que se percebe, com base na sistematização proposta, é que os diversos direitos sociais prestacionais podem apresentar um vínculo diferenciado em relação às categorias de prestações estatais referidas (direito ao trabalho, assistência social, aposentadoria, educação, saúde, moradia, etc.). Quais das diferentes espécies de prestações efetivamente irão constituir o objeto dos direitos sociais dependerá de seu reconhecimento e previsão em cada ordem constitucional, bem como de sua concretização pelo legislador, mesmo onde o Constituinte renunciar à positivação dos direitos sociais prestacionais. Importante é a constatação de que as diversas modalidades de prestações referidas não constituem um catálogo hermético e insuscetível de expansão, servindo, além disso, para ressaltar uma das diferenças essenciais entre os direitos de defesa e os direitos sociais (a prestações), já que estes, em regra, reclamam uma atuação positiva do legislador e do Executivo, no sentido de implementar a prestação que constitui o objeto do direito fundamental.”[2]

Daí se vê logo que não repugna à ordem constitucional que o direito social de moradia – o qual, é bom observar, se não confunde, necessariamente, com direito à propriedade imobiliária ou direito de ser proprietário de imóvel – pode, sem prejuízo doutras alternativas conformadoras, reputar-se, em certo sentido, implementado por norma jurídica que estimule ou favoreça o incremento da oferta de imóveis para fins de locação habitacional, mediante previsão de reforço das garantias contratuais dos locadores.

A vigente Constituição portuguesa é, aliás, ilustrativa ao propósito, ao dispor, no nº 2 do art. 65º:

“2. Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:

(…)

c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada” (Grifei)

A respeito, não precisaria advertir que um dos fatores mais agudos de retração e de dificuldades de acesso do mercado de locação predial está, por parte dos candidatos a locatários, na falta absoluta, na insuficiência ou na onerosidade de garantias contratuais licitamente exigíveis pelos proprietários ou possuidores de imóveis de aluguel.

Nem, tampouco, que acudir a essa distorção, facilitando celebração dos contratos e com isso realizando, num dos seus múltiplos modos de positivação e de realização histórica, o direito social de moradia, é a própria ratio legis da exceção prevista no art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 1990. São coisas óbvias e intuitivas.

Daí, só poder conceber-se acertada, em certo limite, a postura de quem vê, na penhorabilidade de imóvel do fiador, regra hostil ao art. 6º da Constituição da República, em “havendo outros meios de assegurar o pagamento do débito”,[3] porque essa constitui a única hipótese em que, perdendo, diante de particular circunstância do caso, a função prática de servir à prestação de garantia exclusiva das obrigações do locatário e, como tal, de condição necessária da locação, a aplicação da regra contradiria o propósito e o alcance normativo. Aí, não incidiria, não porque, na sua generalidade e eficácia, seja desconforme com a Constituição, senão porque o fato (fattispecie concreta) é que se lhe não afeiçoaria ao modelo normativo (fattispecie abstrata).

Ou, noutros termos, a norma deveras comporta redução teleológica que, para a acomodar à tutela constitucional do direito social de moradia, na dupla face de resguardo simultâneo a direito subjetivo do fiador ao bem de família e, por viés, a análogo direito do locatário à habitação, exclua do seu programa normativo, sem mudança alguma do texto legal, certa hipótese de aplicação, qualificada pela existência de outro ou outros meios capazes de assegurar o pagamento forçado de todo o crédito do locador. A essa construção, no plano dogmático, corresponde o conceito puro de declaração de nulidade, sem redução de texto.[4]Mas não deixa de expressar também o caráter negativo da eficácia do direito social do fiador, visto como poder de defesa contra agressão a posição jurídica redutível ao seu âmbito de proteção.[5]

Mas não é caso dessa redução, porque aqui não se alega nem consta estejam disponíveis outras garantias ao crédito exeqüendo.

Nem parece, por fim, curial invocar-se de ofício o princípio isonômico, assim porque se patenteia diversidade de situações factuais e de vocações normativas – a expropriabilidade do bem do fiador tende, posto que por via oblíqua, também a proteger o direito social de moradia, protegendo direito inerente à condição de locador, não um qualquer direito de crédito -, como porque, como bem observou JOSÉ EDUARDO FARIA, “os direitos sociais não configuram um direito de igualdade, baseado em regras de julgamento que implicam um tratamento uniforme; são, isto sim, um direito das preferências e das desigualdades, ou seja, um direito discriminatório com propósitos compensatórios”.[6]

Não admira, portanto, que, no registro e na modelação concreta do mesmo direito social, se preordene a norma subalterna a tutelar, mediante estímulo do acesso à habitação arrendada – para usar os termos da Constituição lusitana -, o direito de moradia de uma classe ampla de pessoas (interessadas na locação), em dano de outra de menor espectro (a dos fiadores proprietários de um só imóvel, enquanto bem de família, os quais não são obrigados a prestar fiança). Castrar essa técnica legislativa, que não pré-exclui ações estatais concorrentes doutra ordem, romperia equilíbrio do mercado, despertando exigência sistemática de garantias mais custosas para as locações residenciais, com conseqüente desfalque do campo de abrangência do próprio direito constitucional à moradia.

2. Do exposto, nego provimento ao recurso extraordinário.

VOTO

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: – Senhor Presidente, acompanhei o voto do Ministro Cezar Peluso, sempre brilhante, muito bem construído, mas vou pedir vênia para divergir.

Já havia preparado umas anotações para o voto. Apesar da brilhante linha de raciocínio do Ministro Cezar Peluso, não me convenço. Vou tomar essas anotações com um breve acréscimo.

A penhora incidiu sobre o único bem imóvel de propriedade do fiador. Há precedentes na Corte, os REs 352.940 e 449.657, Relator o Min. Carlos Velloso, nos quais se afirma o não recebimento, pelo artigo 6º da Constituição do Brasil, com a redação que lhe foi conferida pela EC 26/2000, da Lei nº 8.245/91, que ressalva a penhora do imóvel residencial do fiador em contrato de locação.

A impenhorabilidade do imóvel residencial instrumenta a proteção do indivíduo e sua família quanto a necessidades materiais, de sorte a prover à sua subsistência. Aí, enquanto instrumento a garantir a subsistência individual e familiar – a dignidade da pessoa humana, pois – a propriedade consiste em um direito individual e cumpre função individual. Como tal é garantida pela generalidade das Constituições de nosso tempo. A essa propriedade, aliás, não é imputável função social; apenas os abusos cometidos no seu exercício encontram limitação, adequada, nas disposições que implementam o chamado poder de polícia estatal.

Se o benefício da impenhorabilidade viesse a ser ressalvado quanto ao fiador em uma relação de locação, poderíamos chegar a uma situação absurda: o locatário que não cumprisse a obrigação de pagar aluguéis, com o fito de poupar para pagar prestações devidas em razão de aquisição de casa própria, gozaria da proteção da impenhorabilidade. Gozaria dela mesmo em caso de execução procedida pelo fiador cujo imóvel resultou penhorado por conta do inadimplemento das suas obrigações, dele, locatário.

Quer dizer, sou fiador; aquele a quem prestei fiança não paga o aluguel, porque está poupando para pagar a prestação da casa própria, e tem o benefício da impenhorabilidade; eu não tenho o benefício da impenhorabilidade.

A afronta à isonomia parece-me evidente.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR) – Vossa Excelência me permite só um esclarecimento.

Neste caso, Vossa Excelência está levantando hipótese de que o locatário teve que obter um fiador para poder morar e para poder enganar o locador?

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: – Estou formulando uma hipótese limite, evidente.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR)- Também estou raciocinando em limite. Então, Vossa Excelência está imaginando hipótese em que o locatário, para poder morar, teve de arrumar um fiador para o contrato?

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: – É verdade.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR)- E, se não tivesse arrumado o fiador?

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: – Se não tivesse arrumado o fiador, não se enfrentaria a situação.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR) – Não morava.

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: – Não enfrentaria a situação.

Vou continuar porque vou dar a resposta exatamente a essa situação. A minha discordância do voto de Vossa Excelência é que não estou me apegando à lógica do mercado no meu voto, mas, sim, ao que diz a Constituição. É nesse ponto que discordo de Vossa Excelência.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR) – Temos leituras diferentes da Constituição, Ministro.

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: – Na Constituição. Parto de um ponto de vista, Vossa Excelência partiu de outro.

Por outro lado – e aqui quero ferir ao cerne do voto do Ministro Carlos Velloso -, diria que o argumento centrado na afirmação do caráter programático do artigo 6º da CB não pode prosperar. Pois é certo que o legislador está vinculado pelos seus preceitos.

Ou seja, os textos da Constituição são dotados de eficácia normativa vinculante. E mais: já é mesmo tempo de abandonarmos o uso da expressão “normas programáticas”, que aparece nos autos, não no voto de Vossa Excelência, porque essa expressão porta em si vícios ideológicos perniciosos. Seguidamente pergunto-me por que terá sido esquecida a lição do Tribunal Constitucional da República Federal da Alemanha, que, em acórdão já de 29 janeiro de 1969, assumiu, em síntese, o seguinte entendimento:

a) quando a teoria sobre normas constitucionais programáticas pretende que na ausência de lei expressamente reguladora da norma esta não tenha eficácia, desenvolve uma estratégia mal expressada de não vigência (da norma constitucional), visto que, a fim de justificar-se uma orientação de política legislativa — que levou à omissão do Legislativo — vulnera-se a hierarquia máxima normativa da Constituição;

b) o argumento de que a norma programática só opera seus efeitos quando editada a lei ordinária que a implemente implica, em última instância, a transferência de função constituinte ao Poder Legislativo.

Porque bastaria a omissão do Poder Legislativo, para que o preceito constitucional fosse retirado de vigência.

Diria, quase finalizando, que este não é o momento adequado para um discurso sobre os diferentes graus de intensidade vinculativa das normas constitucionais, mas insisto neste ponto: a Constituição do Brasil vincula o legislador.

Os constitucionalistas que negam essa vinculação dão prova cabal de que, aqui, entre nós, a doutrina do direito público anda na contramão da evolução da nossa doutrina do direito privado, no seio da qual germina uma muito rica “constitucionalização do direito civil”. Parece estranho, mas, no Brasil, a doutrina mais moderna de direito público é a produzida pelos civilistas… É certo, ademais, que não cabe, no caso, cogitarmos da chamada “reserva do possível”.

Mesmo porque aqui não há nenhuma prestação efetiva do Estado que dependa da disponibilidade de recursos materiais, para que o preceito constitucional possa ser efetivado.

Insisto na circunstância de que não houve a recepção, pela Emenda Constitucional n. 20, da lei que excepcionou a regra da impenhorabilidade.

Por fim, no que concerne ao argumento enunciado no sentido de afirmar que a impenhorabilidade do bem de família causará forte impacto no mercado das locações imobiliárias, não me parece possa ser esgrimido para o efeito de afastar a incidência de preceitos constitucionais, o do artigo 6º e a isonomia. Não hão de faltar políticas públicas, adequadas à fluência desse mercado, sem comprometimento do direito social e da garantia constitucional.

Creio que a nós não cabe senão aplicar a Constituição. E o Poder Público que desenvolva políticas públicas sempre adequadas aos preceitos constitucionais.

De modo que, com a vênia do Ministro Cezar Peluso, dou provimento ao recurso extraordinário para afastar a impenhorabilidade no caso.

ESCLARECIMENTO

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR) – Faço apenas uma ponderação. O voto, como sempre muito brilhante, do Ministro Eros Grau, não responde à argumentação do meu voto, pois sustento que o direito de moradia, como um direito social, abrange não apenas a tutela da moradia do proprietário do imóvel, mas o direito de moradia como tal, em sentido geral, isto é, até de quem não seja proprietário. O direito é amplo. Não se pode dizer que o artigo 6º só abrangeria os proprietários do imóvel. O direito de moradia é direito que deve reconhecido à ampla classe de pessoas que não têm propriedade de imóvel e, portanto, devem morar sob alguma das outras formas, mediante os institutos que o ordenamento jurídico prevê para permitir essa moradia.

Ora, o Estado pode concretizar, conformar esse direito de moradia com várias modalidades de prestações, inclusive a de uma prestação de tipo normativo como essa, ou seja, de estabelecer uma exceção à impenhorabilidade do bem de família num caso em que se exige garantia como condição de acesso ao mercado de locação. À medida que restringirmos o conceito de direito de moradia, iremos restringir o acesso de muitas pessoas ao mercado de moradia, mediante locação, porque os locadores – como sabemos, e isso é fato público e notório – não dão em locação sem garantia, ou, então, exigem garantias que sobrecarregam essa classe, que é a grande classe dos despossuídos.

Os proprietários no Brasil são poucos, Ministro. Estamos pensando na grande classe dos que não são proprietários. Aí é que está o grande problema. São duas classes. Uma grande classe de pessoas desamparadas, que não têm condições econômicas de ser proprietários de imóvel. Então, para esta, o problema não está posto; ou, antes, a esta é que está posto o problema do acesso à moradia. Ou seja, aos poucos e aos pouquíssimos proprietários que voluntariamente acedem em ser fiadores nos contratos, o Estado deu uma opção, que, a meu ver, está dentro da norma constitucional do direito de moradia.

O que está em jogo aí são – como sempre – dois interesses relevantes, mas, neste caso, parece-me que a norma, abrindo a exceção à inexpropriabilidade do bem de família, é uma das modalidades de conformação do direito de moradia por via normativa, porque permite que uma grande classe de pessoas tenha acesso à locação.

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: – Se Vossa Excelência me permite, em nenhum momento pretendi reduzir o direito de moradia aos que são proprietários, bem ao contrário.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR) – Vossa Excelência diz que aplica porque está defendendo os proprietários de imóveis. Estou tentando mostrar que o direito de moradia também tem o outro lado, o de quem não é proprietário de imóvel.

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: – Não tenho dúvida alguma a esse respeito.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR) – Por isso foi que me referi especificamente à disposição da Constituição portuguesa, por ser muito exemplificativa e até didática. Ela diz que o Estado pode, para a tutela do direito de moradia, tomar uma medida de incentivo à moradia arrendada, que compreende os casos de locação.

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: – Quero insistir em um ponto. Não estou limitando o direito de moradia aos proprietários, evidentemente. São poucos os proprietários e não lhes recuso a necessidade de se dar plena concreção à Constituição. Mas é preciso muito mais, a fim de que sejam superados problemas que são da nossa própria estrutura social.

Entendo, e Vossa Excelência perdoe-me, que não podemos fazer a leitura da Constituição para atender à lógica do mercado.

Com isso é que não concordo.

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – Não é disso que o Ministro Cezar Peluso está falando.

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: – Ouvi calmamente a manifestação do Ministro Peluso. Desejo apenas insistir em que o preceito constitucional, artigo 6º, sendo aplicado à situação de que cuidamos não explica, não justifica a exceção à impenhorabilidade.

Além do mais, no meu modo de ver incide aí também a regra da isonomia.

VOTO

O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA (Relator): Senhor Presidente, aparentemente, a questão posta nos presentes autos centra-se no embate entre dois direitos fundamentais: de um lado, o direito à moradia (art. 6º da Constituição federal), que é direito social constitucionalmente assegurado e, em princípio, exige uma prestação do Estado; de outro, o direito à liberdade, em sua mais pura expressão, ou seja, a da autonomia da vontade, exteriorizada, no caso concreto, na faculdade que tem cada um de obrigar-se contratualmente e, por conseqüência, de suportar os ônus dessa livre manifestação de vontade.

Ambos os direitos merecem igual tutela em nossa Constituição, de modo que é tarefa complexa estabelecer os

parâmetros e limites de sua aplicação, em especial neste tema da penhorabilidade do bem de família do fiador nos contratos de locação.

Mas a singularidade do presente caso reside no fato de que a suposta violação de um direito fundamental não se dá no bojo de um típica relação jurídica que se estabelece entre o titular do direito e um órgão estatal, mas, sim, numa relação entre particulares, tipicamente de direito privado.

Nessa linha de pensamento, entendo que a questão posta neste recurso extraordinário implica inicialmente saber se são impositivas ao cidadão comum, ou melhor, se são aplicáveis às relações privadas, com o mesmo peso e o mesmo rigor, as limitações e obrigações impostas ao Estado em virtude da previsão, na Constituição, de um catálogo de direitos fundamentais. Noutras palavras, a questão é saber se esses direitos se impõem, com a mesma força e o mesmo alcance, às relações travadas ao largo de qualquer manifestação estatal. Em seguida, cumpre decidir, mediante juízo de ponderação, qual dos direitos deve preponderar.

Sou dos que entendem que, em princípio e em certas circunstâncias, os direitos fundamentais se aplicam igualmente nas relações privadas.

Assim me manifestei ao votar no julgamento do RE 201.819 (rel. min. Ellen Gracie), quando aderi ao voto vencedor, do ministro Gilmar Mendes. Naquela oportunidade, afirmei:

“Entendo que, em matéria de direitos fundamentais o nosso direito constitucional se distancia largamente da doutrina da State Action do direito norteamericano, segundo a qual as limitações impostas pelo Bill of Rights aplicam-se prioritariamente ao Estado e a quem lhe faz as vezes, jamais aos particulares.

Tomo, contudo, a cautela de dizer que não estou aqui a esposar o entendimento de que essa aplicabilidade deva se verificar em todas as situações. No campo das relações privadas, a incidência das normas de direitos fundamentais há de ser aferida caso a caso, com parcimônia, a fim de que não se comprima em demasia a esfera de autonomia privada do indivíduo.”

É precisamente essa cautela que preconizei ao proferir o voto no caso mencionado, essa opção pelo exame casuístico, que norteará meu voto no presente recurso extraordinário.

Examino o problema em termos objetivos. A norma em causa dispõe o seguinte:

“A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

…………………………………….

VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.”

A norma é muito clara: o fiador que oferece o único imóvel de sua propriedade para garantir contrato de locação de terceiro pode ter o bem penhorado em caso de descumprimento da obrigação principal pelo locatário.

Sustenta-se que essa penhora seria contrária ao disposto na Constituição federal, sobretudo após a Emenda Constitucional 26, que incluiu o direito à moradia no rol dos direitos sociais descritos no art. 6º da Constituição.

Entendo, porém, que esse não deve ser o desenlace da questão. Como todos sabemos, os direitos fundamentais não têm caráter absoluto. Em determinadas situações, nada impede que um direito fundamental ceda o passo em prol da afirmação de outro, também em jogo numa relação jurídica concreta.

É precisamente o que está em jogo no presente caso. A decisão de prestar fiança, como já disse, é expressão da liberdade, do direito à livre contratação. Ao fazer uso dessa franquia constitucional, o cidadão, por livre e espontânea vontade, põe em risco a incolumidade de um direito fundamental social que lhe é assegurado na Constituição. E o faz, repito, por vontade própria.

Por via de conseqüência, entendo que não há incompatibilidade entre o art. 3º, VII, da Lei 8.009/1990, inserido pela Lei 8.245/1991, que prevê a possibilidade de penhora do bem de família em caso de fiança em contrato de locação, e a Constituição federal.

No caso, o acórdão recorrido deu por legítima a penhora de um bem de família do fiador em contrato de locação.

Do exposto, nego provimento ao recurso extraordinário.

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO – Senhor Presidente, a Constituição usa o substantivo “moradia” em três oportunidades: a primeira, no artigo 6º, para dizer que a moradia é direito social; a segunda, no inciso IV do artigo 7º, para dizer, em alto e bom som, que a moradia se inclui entre as “necessidades vitais básicas” do trabalhador e da sua família; e, na terceira vez, a Constituição usa o termo “moradia” como política pública, inserindo-a no rol de competências materiais concomitantes do Estado, da União, do Distrito Federal e dos Municípios (artigo 23, inciso IX).

A partir dessas qualificações constitucionais, sobretudo aquela que faz da moradia uma necessidade essencial, vital básica do trabalhador e de sua família, entendo que esse direito à moradia se torna indisponível, é não-potestativo, não pode sofrer penhora por efeito de um contrato de fiação. Ele não pode, mediante um contrato de fiação, decair.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR) – Se por ato de vontade, não pode dispor do imóvel, não pode tampouco aliená-lo.

O SENHOR MINSITRO CARLOS BRITTO – Mas veja o que estou dizendo, Excelência, cinjo-me à questão dos autos que cuida do contrato de fiação. Entendo que aquele que conseguiu realizar o sonho da casa própria, esse anseio profundo de conseguir o seu pedaço de chão no mundo, que é a casa própria, não pode decair nem por vontade própria.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR)– É indisponível o imóvel!

O SENHOR MINSTRO CARLOS BRITTO – Nesse caso de fiação, cingindo ao contrato de fiação.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR) – Por que só nesse?

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO – Porque ele está garantindo uma situação de terceiro.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR) – Garantia do quê?

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO – Excelência, ele está comparecendo como fiador para honrar o compromisso.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR) – Ministro, ele é um fraudador: declara que pode garantir, mas, na verdade, não pode, pois não tem nada para garantir!

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO – Mas, Excelência, os autos cuidam, também, de bem de família, e vamos ver a Constituição.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR) – É imóvel residencial, essa é a definição da lei, Ministro. Bem de família é um bem que serve de residência.

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO – Esse tema tangencia a nossa preocupação para o âmbito mais dilargado da proteção estatal à família, que a Constituição diz no artigo 226.

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (RELATOR) – Pode até morar sozinho, que é bem de família, Excelência.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Ministro Carlos Britto, Vossa Excelência me permite?

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO – Pois não.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Segundo a óptica externada, a moradia implica necessariamente a propriedade?

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO – Não, nem o Ministro Eros Grau cingiu o direito à moradia ao âmbito dos proprietários.

Apenas o Ministro Eros Grau, a meu sentir, disse que o cidadão, o indivíduo que consegue a situação de proprietário de uma casa e se torna senhor de casa própria, ele recebe um reforço protetivo da Constituição. Estou extraindo isso do sistema de comando da Constituição.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Então passamos a ter um direito absoluto, não alcançável.

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO – Veja, Excelência, o que diz a Constituição em matéria de família: que ela é uma entidade, veja como a Constituição radicalizou, merecedora de proteção especial. O adjetivo “especial” não há de ser desconsiderado, porque não foi à toa utilizado pela Constituição.

Estamos, portanto, no âmbito de um tema que mereceu da Constituição, a meu sentir, um apreço especialíssimo.

Nesta medida das minhas considerações e das ilações que penso extrair do sistema de comando da Constituição, acompanho, comodamente, o voto do Ministro Eros Grau, não sem antes pedir vênia ao Ministro-Relator, que, como de hábito, se houve com muita qualificação na lavratura do seu voto.

VOTO

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – Senhor Presidente, ouvi com atenção os votos proferidos pelos Ministros Cezar Peluso, Eros Grau, Joaquim Barbosa e Carlos Britto.

De fato, o texto constitucional consagra expressamente o direito de moradia. Do que depreendi do debate, não me parece que qualquer dos contendores tenha defendido aqui a idéia de norma de caráter programático. Cuida-se, sim, de se indagar sobre o modus faciendi, a forma de execução desse chamado direito de moradia. E estamos diante de uma garantia que assume contornos de uma garantia de perfil institucional, admitindo, por isso, múltiplas possibilidades de execução. Sem negar que eventuais execuções que venham a ser realizadas pelo legislador possam traduzir eventuais contrariedades ao texto constitucional, no caso não parece, tal como já apontado pelo Ministro Cezar Peluso, que isso se verifique. Não me parece que do sistema desenhado pelo texto constitucional decorra a obrigatoriedade de levar-se a impenhorabilidade a tal ponto.

Já o Ministro Joaquim Barbosa destacou que aqui se enfrentam princípios eventualmente em linha de colisão. E não podemos deixar de destacar e de ressaltar um princípio que, de tão elementar, nem aparece no texto constitucional: o princípio da autonomia privada, da autodeterminação das pessoas – é um princípio que integra a própria idéia ou direito de personalidade. Portanto, embora reconheça, no art. 6º, o direito de moradia, a criação ou a possibilidade de imposição de deveres estatais na Constituição de modos de proteção a essa faculdade desenhada no texto constitucional, não consigo vislumbrar, na concretização que lhe deu a Lei, a violação apontada.

Nesses termos, acompanho o voto do Ministro Cezar Peluso, desprovendo o recurso extraordinário.

VOTO

A Senhora Ministra Ellen Gracie: Senhor Presidente, também eu ponho face a face os princípios constitucionais que asseguram a proteção mais ampla à família. Já que, nesses casos, a impenhorabilidade do bem de família objetiva não apenas defender a pessoa individual daquele responsável pela obrigação, mas, sim, o núcleo familiar. Pondero esse valor. Mas pondero também, com base nas razões brilhantemente desenvolvidas pelo Ministro Cezar Peluso, que a Constituição busca assegurar um amplo acesso à moradia, o qual pressupõe as condições necessárias à sua obtenção, seja no regime de propriedade, seja no regime de locação.

Ponderando todas essas razões, peço vênia aos eminentes colegas que divergem, mas acompanho o Relator.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Senhor Presidente, observo que está em jogo a inconstitucionalidade do inciso VII do artigo 3º da Lei nº 8.009/90, com a redação imprimida pela Lei nº 8.245/91, que excluiu, no campo da legalidade, da penhora, o bem dado ante fiança concedida em contrato de locação.

Por isso, de início, digo da possibilidade de cogitar de acórdão com duplo fundamento: legal e constitucional. A lei, realmente, é explícita, e a Corte de origem, ao prolatar a decisão, afastou a incidência do artigo 6º da Carta Federal, com a redação decorrente da Emenda Constitucional nº 26/2000. Mas preocupa-me a circunstância de abrir exceção quanto ao exame de constitucionalidade, ou não, de ato normativo, sem ouvir, antes, como reclamado pelo Regimento Interno, a Procuradoria Geral da República.

Suscito – sei que na dinâmica dos trabalhos essa é uma óptica isolada – a questão e peço a Vossa Excelência que consigne que levantei a preliminar.

Surge a problemática: o artigo 6º da Constituição Federal, ao referir-se à moradia – não à propriedade, porque é possível ter moradia mediante contrato de locação, de comodato, e pelas mais diversas formas -, confere a intangibilidade da propriedade como bem único da família? A resposta, para mim, é negativa.

Não fosse a Lei nº 8.009/90, não haveria como emprestar ao bem a intangibilidade, considerado o bem do proprietário executado por dívida diversa, própria, assumida por ele na forma direta.

Mais do que isso, Senhor Presidente, há referência, no artigo 6º – e, aí, na redação primitiva –, ao trabalho, e este gera a própria subsistência mediante a percepção de salário. O trabalho está em pé de igualdade com a moradia e, se pudesse dar um peso a cada qual, daria o maior à fonte de subsistência. A previsão é de que a proteção ao salário se dá na forma da lei, a demonstrar que a alusão à moradia contida no dispositivo, por mais linear que seja o significado emprestado, não encerra a proteção à propriedade.

Por isso, peço vênia aos ministros Eros Grau e Carlos Ayres Britto, para desprover o recurso interposto, entendendo que o inciso VII do artigo 3º da Lei nº 8.009/90, com a redação decorrente da Lei nº 8.245/91, é constitucional.

Apartes dos Senhores Ministros CELSO DE MELLO (Voto), CARLOS BRITTO (23.05.06), MARCO AURÉLIO (26.06.06), GILMAR MENDES (15.08.06) e SEPÚLVEDA PERTENCE (30.08.06).

VOTO

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: O exame da controvérsia jurídica suscitada nesta sede recursal extraordinária faz instaurar instigante discussão em torno de tema impregnado do mais alto relevo constitucional.

Refiro-me à questão pertinente à eficácia do direito à moradia, enquanto projeção expressiva de um dos direitos fundamentais elencados no texto da Constituição da República.

A Constituição brasileira, ao positivar a declaração de direitos, proclamou, dentre aqueles impregnados de caráter social, o direito à moradia, assim qualificado pela EC nº 26, de 14/02/2000.

Cabe assinalar, neste ponto, por relevante, que o direito à moradia – que representa prerrogativa constitucional deferida a todos (CF, art. 6º) – qualifica-se como um dos direitos sociais mais expressivos, subsumindo-se à noção dos direitos de segunda geração (RTJ 164/158-161).

A essencialidade desse direito é também proclamada por declarações internacionais que o Brasil subscreveu ou a que o nosso País aderiu, valendo referir, dentre elas, a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana (art. 25) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art. 11), que dispõem sobre o reconhecimento do direito à moradia como expressão de um direito fundamental que assiste a toda e qualquer pessoa.

Na realidade, a Constituição da República, ao conferir positividade jurídica ao direito à moradia, nada mais refletiu senão a grave preocupação já anteriormente externada pelo Estado brasileiro no plano internacional, tanto que o Brasil assumiu, nesse âmbito, compromissos inequívocos de cuja implementação depende a efetiva concretização dessa prerrogativa básica reconhecida às pessoas, tal como resulta – segundo observa SÉRGIO IGLESIAS NUNES DE SOUZA (“Direito à Moradia e de Habitação”, p. 348, item n. 8, 2004, RT) – dos “termos da Agenda Habitat estabelecida na Conferência do Habitat II de Istambul, segundo a qual os governos devem tomar apropriadas medidas para promover, proteger e assegurar a plena e progressiva realização do direito à moradia, em conformidade com o que dispõe o inciso IX do art. 23 da Constituição Federal da República, sendo da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios tutelar o direito à moradia (…)” (grifei).

Dentro do contexto pertinente ao direito à moradia, torna-se relevante observar, na linha da reflexão feita pelo eminente Professor LUIZ EDSON FACHIN (“Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo”, 2001, Renovar), que se impõe, ao Estado, dispensar tutela efetiva às pessoas em geral, notadamente àquelas postas à margem das grandes conquistas sociais, assegurando-lhes, mediante adoção de medidas apropriadas, a proteção do patrimônio mínimo fundada em postulados inderrogáveis, como o princípio da dignidade da pessoa humana, que representa – enquanto um dos fundamentos da República (CF, art. 1º, III) – valor revestido de centralidade em nosso sistema constitucional.

Esse princípio fundamental, valorizado pela fiel observância da exigência ético-jurídica da solidariedade social – que traduz um dos objetivos fundamentais do Estado Social de Direito (CF, art. 3º, I) – permite legitimar interpretações que objetivem destacar, em referido contexto, o necessário respeito ao indivíduo, superando-se, desse modo, em prol da subsistência digna das pessoas, restrições que possam injustamente frustrar a eficácia de um direito tão essencial, como o da intangibilidade do espaço doméstico em que o ser humano vive com a sua família.

Daí a advertência, que se impõe considerar, de que se formou, no âmbito de nosso sistema jurídico, um novo paradigma a ser observado pelos elaboradores e pelos aplicadores da lei, pois, como bem assinalado pela Professora MARIA CELINA B. MORAES (“A Caminho de um Direito Civil Constitucional”, “in” “Revista Estado, Direito e Sociedade”, vol. 1, 1991, PUC/RJ), “no Estado Democrático de Direito, delineado pela Constituição de 1988, que tem entre os seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o antagonismo público-privado perdeu definitivamente o sentido. Os objetivos constitucionais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária e de erradicação da pobreza colocaram a pessoa humana – isto é, os valores existenciais – no vértice do ordenamento jurídico brasileiro, que de modo tal é o valor que conforma todos os ramos do Direito. Daí decorre a urgente obra de controle de validade dos conceitos jurídicos tradicionais, especialmente os do direito civil, à luz da consideração metodológica que entende que toda norma do ordenamento deve ser interpretada conforme os princípios da Constituição Federal. Desse modo, a normativa fundamental passa a ser a justificação direta de cada norma ordinária que com aquela deve se harmonizar” (grifei).

Justificável, desse modo, a ponderação feita pelo eminente Ministro CARLOS VELLOSO, em decisão proferida no julgamento do RE 352.940/SP, quando reconheceu a impenhorabilidade do único imóvel residencial do prestador de fiança locatícia, vindo a assegurar-lhe a proteção constitucional fundada no direito à moradia e cuja concretização reside, em nosso sistema de direito positivo, na tutela estatal dispensada ao bem de família. Em conseqüência desse correto pronunciamento, o eminente Ministro CARLOS VELLOSO – cujas razões ora reproduzo – teve por insubsistente a ressalva constante do inciso VII do art. 3º da Lei nº 8.009/90, na redação dada pela Lei nº 8.245/91, porque conflitante com o direito à moradia:

“Em trabalho doutrinário que escrevi ‘Dos Direitos Sociais na Constituição do Brasil’, texto básico de palestra que proferi na Universidade de Carlos III, em Madri, Espanha, no Congresso Internacional de Direito do Trabalho, sob o patrocínio da Universidade Carlos III e da ANAMATRA, em 10.3.2003, registrei que o direito à moradia, estabelecido no art. 6º, C.F., é um direito fundamental de 2ª geração – direito social que veio a ser reconhecido pela EC 26, de 2000.

O bem de família – a moradia do homem e sua família – justifica a existência de sua impenhorabilidade: Lei 8.009/90, art. 1º. Essa impenhorabilidade decorre de constituir a moradia um direito fundamental.

Posto isso, veja-se a contradição: a Lei 8.245, de 1991, excepcionando o bem de família do fiador, sujeitou o seu imóvel residencial, imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, à penhora.

Não há dúvida que a ressalva trazida pela Lei 8.245, de 1991, inciso VII do art. 3º feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais, esquecendo-se do velho brocardo latino: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio, ou em vernáculo:onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Isto quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado dispositivo inciso VII do art. 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91, não foi recebido pela EC 26, de 2000.” (grifei)

A “ratio” subjacente a esse entendimento prende-se ao fato de que o bem de família do devedor principal – que é o locatário – não pode ser penhorado, muito embora o fiador – que se qualifica como garante meramente subsidiário (CC, art. 827) – possa sofrer a penhora de seu único imóvel residencial, daí resultando um paradoxo absolutamente inaceitável, pois, presente tal contexto, falecer-lhe-á a possibilidade de, em regresso, uma vez paga, por ele, a obrigação principal, fazer incidir essa mesma constrição judicial sobre o único imóvel residencial eventualmente pertencente ao inquilino.

É por esse motivo que PABLO STOLZE GAGLIANO e RODOLFO PAMPLONA FILHO (“Novo Curso de Direito Civil – Parte Geral”, vol. I/288-289, item n. 5, 4ª ed., 2003, Saraiva), analisando esse específico aspecto da questão sob a égide do postulado da isonomia, corretamente observam:

“A Lei n. 8.245/91 (Lei do Inquilinato) acrescentou o inciso VII ao art. 3º da Lei n. 8.009/90, estabelecendo mais uma exceção à impenhorabilidade legal do bem de família: a obrigação decorrente de fiança em contrato de locação.

Em outras palavras: ‘se o fiador for demandado pelo locador, visando à cobrança dos aluguéis atrasados, poderá o seu único imóvel residencial ser executado, para a satisfação do débito do inquilino’.

Não ignorando que o fiador possa se obrigar solidariamente, o fato é que, na sua essência, ‘a fiança é um contrato meramente acessório’ pelo qual um terceiro (fiador) assume a obrigação de pagar a dívida, se o devedor principal não o fizer.

Mas seria razoável garantir o cumprimento desta obrigação (essencialmente acessória) do fiador com o seu único bem de família? Seria tal norma constitucional?

Partindo-se da premissa de que as obrigações do locatário e do fiador têm a mesma base jurídica – o contrato de locação -, ‘não é justo que o garantidor responda com o seu bem de família, quando a mesma exigência não é feita para o locatário’. Isto é, se o inquilino, fugindo de suas obrigações, viajar para o interior da Bahia, e ‘comprar um único imóvel residencial’, este seu bem será ‘impenhorável’, ao passo que o fiador continuará respondendo com o seu próprio ‘bem de família’ perante o locador que não foi pago.

À luz do Direito Civil Constitucional – pois não há outra forma de pensar modernamente o Direito Civil -, parece-me forçoso concluir que este dispositivo de lei ‘viola o princípio da isonomia’ insculpido no art. 5º da CF, uma vez que ‘trata de forma desigual locatário e fiador’, embora as obrigações de ambos tenham a mesma causa jurídica: o contrato de locação.” (grifei)

O SR. MINISTRO CARLOS BRITTO – Vossa Excelência me permite um aparte?

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Pois não.

O SR. MINISTRO CARLOS BRITTO – Esse artigo 6º, tão reiteradamente citado pelo Ministro Carlos Velloso, vem em um contexto constitucional de nítida densificação do princípio da dignidade da pessoa humana, que é o terceiro fundamento da República, ou seja, esses princípios constitucionais não são fórmulas ocas ou vazias. A nossa Constituição se caracteriza por uma primorosa normatividade. Podemos até dizer que não há deficit de

normatividade nesse campo dos direitos fundamentais, mas, infelizmente, na prática jurisdicional, há um deficit de concretividade ou de aplicabilidade.

Quando Vossa Excelência fala do valor da moradia única, lembrei-me, agora, do artigo 183 da Constituição, que instituiu o chamado “usucapião extraordinário”, cuja dicção é tão clara:

“Art. 183 – Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.”

Daí por que fiz questão de enfatizar também o conteúdo do artigo 7º, IV, da Constituição, por qualificar a moradia como necessidade vital, básica. Há de se extrair daí uma conseqüência jurídica, assim, na linha do pensamento de Vossa Excelência, concreta.

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Inquestionável o acerto da conclusão ora exposta por Vossa Excelência. A moradia representa, efetivamente, uma necessidade básica da pessoa. É preciso, desse modo, que o Poder Público dê conseqüência ao que a nossa Lei Fundamental proclama, notadamente quando põe em destaque essa garantia assegurada às pessoas em geral, como se vê, por exemplo, da norma inscrita no inciso XXVI do art. 5º da Constituição da República, que impede a penhora da pequena propriedade rural, desde que trabalhada pela família.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – A contrario senso, a pequena propriedade explorada pela família.

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – E deve demandar atividade produtiva.

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – Ministro, Vossa Excelência me permite um aparte?

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Pois não.

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – Se, na verdade, pudéssemos adotar como premissa básica que a impenhorabilidade tem essa dimensão, talvez devêssemos avançar para considerar nãorecepcionados – na realidade, talvez devêssemos avançar até para considerar inconstitucional, porque Vossa Excelência já o disse que seria a concretização do princípio da dignidade humana – não só o inciso VII, mas todas as demais exceções. Veja que, no artigo 3º, a lei diz:

“Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

I – em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias;

II – pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;

III – pelo credor de pensão alimentícia;” – outra hipótese, também, em que se faz uma notória valoração, em razão até de temas que já conhecemos –

“IV – para cobrança de impostos, predial” – veja que curioso – “ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;

V – para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;

VI – por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.”

Cada uma dessas exceções contém uma valoração, uma ponderação realizada pelo próprio legislador.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – Veja Vossa Excelência, até na hipótese de produto de crime, levou-se ao bem de família – não apenas do proprietário – a possibilidade de agir assim.

O SR. MINISTRO CARLOS BRITTO – Cada um desses itens será enfrentado no seu devido tempo.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – Vamos acabar chegando à incapacidade civil do proprietário de bem de família.

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Analiso, nesta sede recursal, apenas o caso concreto, pois, como bem assinalou o eminente Ministro CARLOS BRITTO, as exceções à cláusula geral de impenhorabilidade do bem de família serão examinadas em momento oportuno, se e quando a controvérsia constit