16 de janeiro de 2006

Artigo – A Dignidade humana na questões de moradia

Resumo

O presente trabalho refere-se às discussões que envolvem a dignidade humana nas questões de moradia, partindo de uma fundamentação metafísica dos conceitos filosóficos da dignidade humana, das necessidades inerentes aos seres humanos, e, de modo realista a condição humana daqueles que são privados de um lugar no mundo. Apresenta, ainda, referências à proteção dessa dignidade garantida pelo ordenamento jurídico. Bem como uma crítica à inefetividade da proteção desse direito fundamental, em completo desrespeito à ordem nacional e internacional de proteção.

Palavras-chave

Dignidade. Dignidade humana. Moradia digna. Direitos fundamentais.Proteção da dignidade.

Sumário

Introdução. 2.A dignidade humana. 3.A proteção da dignidade. 4. A dignidade humana nas questões de moradia. 5. Considerações finais. Referências bibliográficas.

1. Introdução

O presente estudo pretende discutir de forma panorâmica reflexões a respeito da dignidade da pessoa humana nas questões de moradia.Ou seja, quanta dignidade pode ter uma pessoa que não tem onde morar, nem condições para pagar pela apropriação de um “lugar no mundo”.  Para tanto o estudo foi dividido em três partes. E, em uma apresentação singela se tenta apresentar a conceituação e o tratamento jurídico dado à referida questão e às reflexões propostas pelos autores consultados.

Em uma primeira parte se apresenta sinteticamente a fundamentação metafísica da dignidade da pessoa humana sob a ordem racional do Direito Natural, com base, principalmente na obra de Kant e Schopenhauer, cujo pensamento foi seguido pela doutrina de Sarlet e Comparato. Em segunda parte se faz referência à questão do reconhecimento e da obrigatoriedade da proteção da dignidade humana como dever do Estado e direito do homem em função de sua condição humana, com fundamento na obra de Arendt, Kant e Sarlet. Em uma terceira e última parte, busca-se apresentar a dignidade da pessoa humana nas questões de moradia, discorrendo sobre a importância da moradia para a dignidade humana, os organismos de reconhecimento da mesma como um direito inerente ao ser humano, com base na obra de Sarlet, Arendt e Alfonsin. Sem, contudo, que se adentre às questões da apropriação propriamente dita. Visto que, apesar da importância, não é este o objetivo principal do presente estudo.

A importância deste trabalho decorre da possibilidade de se obter uma visão, mesmo que superficial, dos assuntos referidos a partir do pensamento de cada autor, eis que por meio da conceituação apresentada pelos mesmos se busca formular um conceito da dignidade da pessoa humana na sociedade moderna relativamente às questões de moradia. O que se faz através de uma abordagem positiva, visto que o estudo busca puramente descrever o pensamento dos autores acerca dos conceitos e importância dos temas desenvolvidos. Neste sentido, este trabalho tem seu desenvolvimento composto por citações diretas, bem como paráfrases dos doutrinadores com referências em notas de rodapé, uma vez que as idéias contidas são em sua maioria de autoria dos mesmos.

Por fim, o tema da dignidade da pessoa humana nas questões de moradia, e por conseqüência o reconhecimento do direito à moradia digna como tema de “direitos humanos”, pois inerente à condição humana, e como tal devendo ser não somente reconhecido, mas efetivado, revela-se atual e dinâmico, instigando uma incessante busca para seu desvelamento, em especial através dos pensamentos dos autores contidos nas obras objeto deste estudo e de muitos outros que não se teve oportunidade de apresentar. Por outro lado, a amplitude do assunto, faz com que este estudo não tenha a pretensão de esgotar a matéria, nem aprofunda-la, mas, principalmente, de servir como guia para suscitar o debate e posteriores reflexões.

2. A dignidade humana

Ao se falar em direitos humanos leva-se em conta, neste estudo, a concepção do homem a partir de uma ordem metafísica que busque expressar a sua natureza humana, que o vê como um ser dotado de valor natural, de dignidade congênita.  Para entender o que é a “dignidade humana”, é necessário que se entenda primeiramente a natureza humana e suas principais características. Características essas que fazem com que os seres humanos diferenciem-se dos demais seres vivos. Dentre elas pode-se dizer que a principal é estarem os seres humanos dotados da razão. Visto que, em função de sua vontade racional, somente o ser humano é capaz de viver em condições de autonomia e guiar-se pelas leis que ele próprio cria,  o que possibilita que tenha conhecimento da intensidade de suas necessidades.

As necessidades humanas constituem um pressuposto para as ações humanas que estão condicionadas por elas, e possuem um caráter subjetivo e pessoal cuja intensidade apresenta-se de forma diferente de um indivíduo para outro. Assim, mesmo que as necessidades sejam as mesmas para todos os indivíduos, a intensidade com que cada um as sente, e procura satisfazê-las, é diferente de um para outro. Como também é diferente em um mesmo indivíduo em tempo e espaços diversos.

O ser humano encontra-se em equilíbrio quando não possui nenhuma necessidade a ser satisfeita. A partir do momento em que passa a sentir algum tipo de necessidade o equilíbrio rompe-se e o indivíduo passa a buscar a satisfação da necessidade para que consiga, novamente, voltar ao equilíbrio . Estar em equilíbrio significa sentir bem-estar, felicidade, prazer, e todas as ações humanas passam a realizar-se com esse fim.  Quanto mais próximo do prazer, da felicidade, mais distante do sofrimento, da dor. Logo, toda a ação do homem tem por fim essencialmente fugir da dor, pois a dor é de natureza do homem e não a felicidade. Esta se alcança de forma indireta, ao se fugir da dor.  A dor, tanto quanto o prazer, faz parte de um grau de forças que conservam a espécie, se o homem não enfrentar o sofrimento poderá não sobreviver em determinadas situações. E alguns até sentem-se felizes, em heroicamente, enfrentar o sofrimento.  Pois, se existe alguma finalidade nas coisas que se deseja evidentemente tal fim deverá ser o bem.  Ou seja, a felicidade. Pois esta é sempre buscada por si mesma e não no interesse de se obter outra coisa.

Assim, por mais diversas que sejam as formas pelas quais a felicidade, ou a infelicidade, se apresente ao ser humano, a base material de uma e de outra constitui-se pelo prazer ou pela dor corporal. Que se traduz pela satisfação da saúde, do alimento, da proteção do frio e umidade e da satisfação sexual, ou pela falta destes.  Que são as mesmas necessidades que também se apresentam nos animais. Entretanto, diferentemente destes o homem tem capacidade de reflexão e de saber qual é a intensidade do prazer ou da dor que sofre. Supridas as necessidades básicas o homem amplia suas necessidades, para aumentar o seu prazer, e por conseqüência disso amplia também o seu sofrimento quando não consegue satisfazer suas necessidades. Esse sofrimento é reforçado pela maculação da honra e da vergonha que o homem é capaz de sentir.  E, essa vergonha torna-se tão irremediavelmente insuportável que, por vezes, pode levar o homem a suicidar-se.      

A “dignidade”, palavra derivada do latim dignitas, que significa virtude, honra, consideração, que se entende como a qualidade moral que possuída por uma pessoa serve de base ao respeito em que é considerada , reside justamente na capacidade de discernimento da vergonha, da humilhação que o ser humano possui, e que o distingue dos demais seres da natureza. E que é inerente ao homem, no sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade , da mesma capacidade reflexiva. Sendo esta, por vezes, uma fonte de prazer quase superior a todas as outras fontes de prazer, eis que a opinião das outras pessoas, aquilo que diz respeito à honra dos indivíduos, torna-se a finalidade de quase todas as pretensões humanas além do prazer físico ou da dor.
 Para Kant quanto mais o homem cultiva a razão para o gozo da vida e da felicidade, mais se afasta da verdadeira satisfação, ao descobrir que a sobrecarga de fadigas na busca supera o ganho em felicidade. A razão não é suficientemente apta para guiar com segurança a vontade no que diz respeito à satisfação das necessidades humanas, pois a própria razão, por vezes, multiplica essas necessidades. Ao passo que também é uma das causas da desigualdade entre os homens.

A extrema desigualdade na maneira de viver, o excesso de ociosidade de uns, o excesso de trabalho de outros, a facilidade de irritar e satisfazer nossos apetites e nossa sensualidade, os alimentos muito requintados dos ricos, que os nutrem com sucos excitantes, e os afligem com indigestões, a má nutrição dos pobres, que chega muitas vezes a faltar-lhes, obrigando-os a sobrecarregar avidamente o estômago quando podem, as vigílias, os excessos de toda espécie, os transportes imoderados de todas as paixões, as fadigas e o esgotamento do espírito,os pesares e as penas sem número que se experimentam em todos os estados e que perpetuamente arruínam as almas: eis os funestos fiadores de que a maior parte dos nossos males são nossa própria obra e de que poderíamos evita-los quase todos conservando a maneira de viver simples, uniforme e solitária, que nos foi prescrita pela natureza. 

A dignidade é também qualidade intrínseca do ser humano, não podendo dele ser separada, ou retirada, pois já existe em cada pessoa como algo que lhe é próprio. E, independe de circunstâncias concretas, pois é inerente a todo ser humano, visto que todos são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas mesmo que não se comportem de forma digna no relacionamento com outros homens ou consigo mesmo.

A respeito da dignidade pode-se dizer, ainda, que tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, tudo aquilo que se acha acima de qualquer preço, não admitindo, portanto, qualquer equivalência, compreende uma dignidade.  De forma que, ao se definir a “dignidade humana” parece ser mais facial dizer o que não é a dignidade humana do que expressar o que ela realmente é.  Eis que, o conceito da mesma está diretamente relacionado com espaço e tempo, pois encontra-se em constante processo de construção e desenvolvimento. Aquilo que era considerado como dignidade do homem nos séculos XVII e XVIII, como a liberdade por exemplo, possui um conceito diferente daquele que se tem hoje, partindo-se do pressuposto de que hoje a liberdade do homem, tanto física quanto intelectual já foi conquistada, e o objeto da dignidade passa a ser, então, outro. 

Durante a história da humanidade o homem passou por vários momentos nos quais a condição em que se encontrava em determinadas situações, com certeza, não eram situações nas quais pudesse ser encontrado um ser humano. Como exemplo pode-se citar a escravidão, que continuou existindo muito depois da Revolução Francesa. E, mesmo no século XX, pode-se vislumbrar tais situações quando voltam à tona os horrores vividos durante a Segunda Guerra Mundial. Nos quais o homem foi forçado a viver tal qual os animais: lutando pelo alimento e pela água, e tentando esconder-se do frio.  Condições nas quais o homem é privado de sua condição humana, e já não mais se reconhece como ser humano dotado de razão e sentimentos.  

A condição humana passa a ser o atributo dado ao homem que o torna diferente dos animais. O homem que vive apenas pela comida conquistada a cada dia, das sobras ou da generosidade dos outros homens, que sente fome, que sente frio por não ter um lugar para abrigar-se, que “mora” embaixo de pontes, viadutos, favelas, que dorme no chão duro, que não tem sonhos, ou planos, que perde a capacidade de reflexão sobre suas necessidades, perde também sua condição humana, sua dignidade. Não pode mais ser considerado um homem , pois privado de suas necessidades mais elementares.

Toda necessidade está intimamente ligada à vida, de forma que a própria vida é ameaçada quando se elimina totalmente a necessidade.  As necessidades vitais, além de não dependerem da vontade, põe em risco a vida quando não atendidas, e reclamam, portanto, a satisfação.A qual, por sua vez, passa a ser conteúdo dos direitos humanos fundamentais. 

A eliminação da necessidade obscurece a linha que divide a liberdade da necessidade, a tal ponto que já não se sabe o que é ser livre e o que é ser forçado pela necessidade. Despidos de uma condição humana, os pobres são considerados como pessoas inferiores, aos quais, na grande maioria das vezes, é atribuída a responsabilidade pela situação em que vivem. O homem que vive em condições desumanas, revirando lixos e morando em barracos, escolheu essa condição ou foi forçado pela necessidade a aceitar uma condição de subcidadania?  

Nesse sentido ter um lugar no mundo passa a ter uma fundamental importância na vida de cada pessoa. Pois é na privacidade desse lugar que a pessoa se revela como ser humano. É onde repousa, onde têm e mantém sua família protegida, onde se encontra consigo mesma e satisfaz suas necessidades. É onde encontra forças para enfrentar inimigos perigosos, contra os quais não consegue se defender, como as debilidades naturais, a infância, a velhice, as moléstias de toda espécie.

3. A proteção da dignidade

Para o pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, a dignidade da pessoa humana, assim como a idéia do direito natural em si, passaram por um processo de racionalização e laicização, mantendo-se, todavia, a noção fundamental da igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade.” Remanescendo, assim, desse pensamento o entendimento de que a ordem jurídica que recebe a idéia da dignidade da pessoa humana, parte sempre do pressuposto de que o homem, em razão de sua condição humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é sempre titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados tanto pelos outros homens quanto pelo próprio Estado.

A dignidade necessita ser imposta ao Estado para que este direcione suas ações de modo a preserva-la, criando condições para o seu pleno exercício e fruição, pois não se sabe até que ponto o individuo é capaz de realizar, ele próprio, suas necessidades existenciais básicas.  De forma que, passa a ser ao mesmo tempo limite e tarefa dos poderes estatais bem como da comunidade em geral, de todos e de cada um. Cuja duplicidade de condição também sugere uma dimensão defensiva e prestacional da dignidade humana, que se manifesta pela autonomia que deve possuir a pessoa humana, bem como pela necessidade de sua proteção por parte da comunidade em que vive e pelo Estado, podendo inclusive, a proteção, prevalecer sobre a autonomia da vontade individual. 

Como a dignidade da pessoa está diretamente relacionada com a condição humana de cada indivíduo, não se pode desconsiderar uma dimensão social da dignidade de cada uma e de todas as pessoas, justamente por serem todos iguais em dignidade e direitos, tal qual prescrito pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, e pela condição de que convivem em sociedade.  De forma que, se pode dizer que a dignidade da pessoa humana é qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do estado e da sociedade, que advém de um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem e resguardem a pessoa de todo e qualquer ato que resulte em atentado contra sua dignidade.

Onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade em direitos e dignidade, e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e essa, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças.
 
Quando se reconhece que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui um fim e não meio da atividade estatal, pois o homem “existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade,”   verifica-se que a dignidade da pessoa passou a integrar o direito positivo vigente e é nesta condição que deve ser sempre analisada.

Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres, cuja existência não assenta em nossa vontade, mas na natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, um mero valor relativo, como meios, e por isso denominam-se coisas, ao passo que os seres racionais denominam-se pessoas. […] O homem não é uma coisa; não é, portanto, um objeto passível de ser utilizado como simples meio, mas pelo contrário, deve ser considerado sempre em todas as suas ações como fim em si mesmo. 

Sendo a dignidade qualidade intrínseca da pessoa humana, não é, ela própria, um direito fundamental, não poderá ser concedida pelo ordenamento jurídico. Pois, quando se fala em direito à dignidade, estar-se-á referindo ao direito ao reconhecimento, respeito, proteção, promoção e desenvolvimento da dignidade.  
Constitui-se a dignidade da pessoa humana como valor que guia não apenas os direitos fundamentais, pois, quando se diz que alguns direitos são fundamentais se quer dizer que estão diretamente ligados à dignidade humana e são ao mesmo tempo as condições para a existência dessa dignidade ,  mas toda a ordem jurídica constitucional e infraconstitucional, razão pela qual, se justifica que seja caracterizado como princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-valorativa.  Assim, a proteção da dignidade da pessoa humana foi reconhecida como condição de princípio fundamental do Estado democrático de Direito brasileiro.  Devendo-se reconhecer que mesmo prevalecendo em face de todos os demais princípios e regras do ordenamento, não há como afastar a necessária relativização do princípio da dignidade da pessoa em razão à igual dignidade de todos os seres humanos

Tendo a Constituição brasileira erigido a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento do Estado democrático de Direito, mesmo que pré-exista ao direito, o seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídica constituem sempre requisito para que possa ser tida como legítima, e deva ser protegida pelo poder estatal.  O que significa que ao se reconhecer a dignidade da pessoa humana pela ordem jurídico-positiva, não se está afirmando que esta apenas exista na medida que seja reconhecida pelo Direito, pois dependerá ainda, de sua efetiva realização e promoção.
 
O princípio da dignidade da pessoa humana serve de parâmetro para a aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico.

A dignidade da pessoa humana, na condição de valor fundamental exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões. Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhes são inerentes, em verdade, estar-se-á lhe negando a própria dignidade.

Um dos pressupostos da dignidade é a liberdade, sem liberdade seja ela positiva ou negativa não estará sendo assegurada a dignidade.  Bem como a igualdade, pois, também constitui pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que não podem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário. A liberdade e a igualdade passam a ser um ideal a ser perseguido, um valor, um dever ser.  E, por essa razão não podem ser toleradas a escravidão, a discriminação racial, por religião, por sexo, ou qualquer ofensa ao princípio da igualdade tanto formal quanto material. Passando a exercer a função de elemento e medida dos direitos fundamentais, de forma que, qualquer violação de um direito fundamental será sempre uma ofensa à dignidade da pessoa. 

Pois, é então evidente que o violador dos direitos dos homens tenciona servir-se das outras pessoas como simples meios, deixando de considerar que elas, como seres racionais que são, devem sempre ser tratadas simultaneamente como fins, isto é, somente como seres que devem poder conter em si o fim dessa mesma ação.  

O princípio da dignidade da pessoa humana impõe limites à atuação do Estado, com o objetivo de impedir a violação desse princípio por parte do próprio Estado, bem como, deverá o Estado manter como meta a promoção concreta de uma vida digna para todos.  O homem passa a ter também alguns direitos e não somente deveres, e o Estado, deixa de ter somente direitos e passa a ter também deveres . Esse dever de proteção imposto ao poder público inclui a proteção da pessoa mesmo contra si mesma, estando o Estado autorizado e obrigado a intervir em face de atos de pessoas que, mesmo por vontade própria, atentem contra sua própria dignidade. Como é o caso, por exemplo, do suicídio. Não pode o homem dispor da pessoa que existe nele para o mutilar, degradar ou matar. 

A dignidade da pessoa atua simultaneamente como limite dos direitos e limite dos limites. Ou seja, para assegurar a dignidade e os direitos fundamentais de uma pessoa não se acaba, por vezes, afetando a dignidade de outra pessoa? Até que ponto a dignidade da pessoa pode efetivamente ser tida como absoluta, independente de qualquer tipo de restrição ou relativização? Em resposta a esse questionamento Sarlet diz que apenas o exame em concreto, considerando cada norma de direito fundamental objetiva e subjetivamente, com a avaliação da natureza e da intensidade da ofensa, fornecerá elementos para uma solução constitucionalmente adequada.

Mesmo com muitos argumentos em favor de uma possível relativização até mesmo da dignidade da pessoa humana, constata-se que a doutrina majoritária se opõe a qualquer tipo de restrição à dignidade pessoal, pois cada restrição desta resulta em sua violação e, portanto, encontra-se vedada pelo ordenamento jurídico.  Pois, a dignidade da pessoa humana constitui o reduto intangível e intocável de cada indivíduo, e, assim, a última fronteira contra qualquer ingerência externa. 
 
Para assegurar que essa “fronteira” seja respeitada e protegida são necessários os pacto que se dão por meio da legislação constitucional, infraconstitucional, tanto nacional como internacional, como o são os pactos internacionais, tratados, convenções, criados para proteger o homem, não somente do poder estatal, mas também dele próprio, como “o homem lobo do homem”.

4. A dignidade humana nas questões de moradia

Por volta dos séculos XVI e XVII, o direito à propriedade passou a ser considerado por alguns pensadores como direito natural do homem, a propriedade seria inerente ao ser humano. E, pelo simples fato de o homem existir, já lhe seria dado o direito a um lugar no mundo. Tal pensamento influenciou tanto os pensadores da época, que foi decisiva na mudança da discussão a respeito da vida, da liberdade e da propriedade.

[…]Decisiva, inclusive pela influência de sua obra sobre os autores iluministas, de modo especial franceses, alemães e americanos do século XVIII, foi também a contribuição doutrinária de John Locke (1632-1704), primeiro a reconhecer aos direitos naturais e inalienáveis do homem (vida, liberdade, propriedade e resistência) uma eficácia oponível, inclusive, aos detentores do poder, este, por sua vez, baseado no contrato social, ressalvando-se, todavia, a circunstância de que, para Locke, apenas os cidadãos ( e proprietários, já que identifica ambas as situações) poderiam valer-se do direito de resistência, sendo verdadeiros sujeitos, e não meros objetos do governo.[…] 

Com o crescimento da atividade comercial, surgiu uma nova classe social: a burguesia, que concentrou o capital, através do mercantilismo.  A nobreza sem capital e desmoralizada, perdeu poder frente a esta nova classe. A Revolução Francesa acabou com a divisão da propriedade em domínio direto e útil, unificando a propriedade. Nesta fase, não era mais o título de nobre que significava poder, mas o patrimônio. Surgiu, então, o Código de Napoleão, em 1804, enaltecendo a propriedade privada e individual. O Código Civil Francês era assim, um “código da propriedade”  . E, ao contrário do que ocorria no feudalismo, o homem comum poderia ser proprietário de sua área de terras. Pois, os princípios básicos da época, defendidos pela burguesia eram: liberdade, igualdade e fraternidade. De forma que, todos os indivíduos passaram a ter liberdade para adquirir o seu patrimônio, todos eram iguais. A propriedade passou a ser absoluta, individualista, com base no movimento liberal que atribuiu ao homem a liberdade em adquirir suas próprias terras. Surgindo, assim, a “propriedade privada”, como direito individual, forjada em um liberalismo contratual  que passou a ser a base da sociedade.

Porém, o mercantilismo que tomou conta da economia na época fez com que se percebesse que apesar da liberdade para a aquisição de terras, a maior parte da população não tinha condições de adquiri-la, continuando, assim, a apropriação de bens nas mãos de uma classe dominante, cuja apropriação tinha um caráter eminentemente individualista.

A propriedade, com o passar dos anos, perdeu seu caráter universal, e passou a situar-se na própria pessoa, naquilo que o indivíduo somente podia perder juntamente com a vida, na privatividade que não podia ser eliminada. Pois, na existência humana, a eliminação da esfera privada, representa a ameaça da eliminação da propriedade privada no sentido de lugar tangível possuído na terra por uma pessoa.  Assim, a diferença entre aquilo que as pessoas têm em comum, que é o público, e aquilo que as pessoas têm individualmente e que é usado e consumido diariamente, é muito mais urgentemente necessário que qualquer parte do mundo comum”

Logo, não pode subsistir a privação da privatividade, pois, as quatro paredes da propriedade particular de uma pessoa oferecem o único refúgio seguro contra o mundo público comum – não só contra tudo o que nele ocorre mas também contra sua própria publicidade, contra o fato de ser visto e ouvido […]. […] o único modo eficaz de garantir a sombra do que deve ser escondido contra a luz da publicidade é a propriedade privada – um lugar só nosso, no qual podemos nos esconder.

A distinção entre o que é privado, próprio do individuo, e o que é público é coincidente com a relação de oposição existente entre necessidade e liberdade, vergonha e honra, existem coisas que devem ser ocultadas dentro de intimidade do lar, e outras que podem ser expostas ao público.

Especificamente nas questões de moradia pode-se observar que o Constituinte brasileiro deixou transparecer de forma clara e inequívoca a sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas que são embasadas e informativas de toda a ordem constitucional, com normas definidoras de direitos e garantias fundamentais que, juntamente com os princípios fundamentais, integram a essência da Constituição Federal.

O direito de propriedade tendo presente o seu conteúdo social, consagrado no constitucionalismo pátrio, constitui-se em dimensão inerente à dignidade da pessoa, considerando que a falta de uma moradia decente ou mesmo de um espaço físico adequado para o exercício da atividade profissional evidentemente acaba, em muitos casos, comprometendo gravemente os pressupostos básicos necessários para que se possa ter uma vida digna. 
 
Segundo Alfonsin, para Roig as necessidades que os seres humanos possuem podem ser verdadeiras ou falsas. As necessidades verdadeiras seriam aquelas inerentes à condição humana e a manutenção da própria vida, como o alimento e a moradia. Reconhecidas Constitucionalmente através da introdução feita ao rol de Direitos Sociais no art. 6º da Constituição Federal, pela EC nº26 de fevereiro de 2000 . As falsas seriam aquelas que surgem pela ampliação das necessidades verdadeiras: uma comida especial, uma casa com determinados luxos e acréscimos, uma da moda, etc.

Entretanto, na história da humanidade pode-se observar que a civilização não conseguiu sequer garantir para as pessoas aquilo que os animais já garantiram para os seus semelhantes  .O que faz com que se perceba que o estado de pobreza no qual muitos indivíduos se encontram atualmente, sem ter condições de obter o mínimo necessário para sua manutenção digna, não é uma opção própria.   As pessoas não são pobres por opção, porque assim desejaram viver.  São pobres porque foram colocadas nessa situação por um sistema social que as exclui em todos os sentidos que possa ter a “exclusão”.

Os bens como a terra, por exemplo, que não deixam de ser necessários por serem considerados mercadorias, por terem valor econômico, e que possuem um valor universal e comum que exige que o respeito ao seu valor de troca não seja priorizado em relação ao seu valor de uso, conjuga valores e interesses muito superiores aos puramente patrimoniais. Tanto que o ordenamento jurídico, por diversas normas consagra o direito à moradia como parte do rol dos direitos humanos a serem assegurados a todas as pessoas, tanto nacional, quanto internacionalmente.

Dentre as muitas normas que consagram o direito à moradia digna como direito fundamental inerente à pessoa humana, e, portanto, constitutivo de sua dignidade humana, alem da Constituição Federal brasileira, pode-se citar o constante no Estatuto da Cidade, que, ao tratar das várias formas pela qual o solo urbano deve ser usado de maneira racional, em cumprimento da sua função social, prevê a concessão do direito de superfície, a usucapião coletiva ; pode-se vislumbrar, ainda tais normas, referidas no elenco dos Direitos Fundamentais , na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 ; no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 ; na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965 ; na Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação da mulher, de 1979 ; na Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 ; na Agenda 21 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 , na Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver de 1976, e na Conferência do Habitat II em Estambul,1996 . Sendo que, nessa última, foi reconhecido o estado de posse  como direito humano fundamental inerente a todas as pessoas e que deve ser válido para todos os sem-teto do mundo .
 
A acumulação do solo nas mãos de poucos, para permitir sua valorização segundo as regras do livre mercado, expropria o direito da grande maioria pobre morar com dignidade e em conseqüência, expropria seus direitos humanos fundamentais.

Muito antes que se possa ter liberdade de iniciativa econômica é preciso que se possibilite o acesso por todos ao bem terra.  Visto que a ordem econômica deve assegurar a todos a existência digna, deve garantir que o processo econômico se oriente para o bem-estar e a justiça social. Os valores econômicos são, assim, valores de meio, os valores sociais, são valores de fim. Como já foi possível constatar a riqueza, por si só, não diminui a pobreza .

Sem alternativa, a maioria da população que não é proprietária, somente terá acesso a um espaço através da posse pela via denominada de clandestina. Ou seja, pela invasão, pela ocupação, pela formação da vila, da favela, do loteamento irregular, ou seja, da clandestinidade. Tudo em função do preço da terra, do seu valor de troca, ao qual a grande maioria de pobres nunca terá acesso.  As ocupações continuam, dessa forma, sendo vistas como esbulho possessório, punível com sanção civil e penal.

Nas referidas ocupações não se considera que os “sem-teto” e “sem-terra” tem no liberalismo o apoio histórico para os atos de ocupação, bem como para a revolução , pela situação de desespero na qual se encontram.  Da qual se pode presumir que:

Pobreza é mais do que privação, é um estado de constante carência e aguda miséria, cuja ignomínia consiste em sua força desumanizadora; a pobreza é abjeta, porque submete os homens ao império absoluto de seus corpos, isto é, ao império absoluto da necessidade, como todos os homens a conhecem a partir de sua experiência mais íntima independente de todas as especulações.

Mas de quem é a culpa pelos pobres não serem capazes de adquirir a propriedade sobre o bem terra? Deles próprios ou de todo o sistema econômico, jurídico e político que os exclui?

Uma das respostas para tal indagação, pode-se dizer que é a apropriação de poucos sobre muitas partes de terra. O que faz com que nem sempre esse proprietário consiga usa-la de forma racional, no cumprimento de sua função, que se resume na apropriação como exploração financeira. Sem que se considere que para o titular do direito de propriedade, esta deve assumir papel de princípio geral, pelo qual a autonomia de vontade do proprietário não decorre de livre-arbítrio. Pois, para que obtenha a tutela do seu direito de propriedade deve comportar-se em conformidade com a razão pela qual o direito de propriedade lhe foi outorgado . Para poder continuar sendo titular de um direito de propriedade deve utiliza-la de modo a sempre cumprir com a sua função social.

Assim, a função social se faz cumprir pelo poder legislativo, através da formulação de leis, que servem como guia para manter o proprietário dentro dos limites do uso da propriedade. E, pelo poder judiciário e demais operadores jurídicos, segundo Perlingieri, como critério de interpretação e aplicação do direito, onde se deve deixar de aplicar normas nas quais não haja observação do princípio pelo proprietário. Assim, o proprietário que abandona seu imóvel (deixando de cumprir a função social atribuível ao mesmo) e tem esse imóvel invadido por outrem que nele passa a produzir (ou construir), perde a proteção que teria se tivesse mantido o imóvel em função do cumprimento de sua função social.

Como qualquer outro instrumento que está à disposição do homem a propriedade não se subtrai ao destino, a um fim que transcende ao indivíduo: “ la función social no es tanto la característica típica como el concreto modo de manifestarse de este fin supraordenado, manteniéndose así como um dato externo, aunque no eliminable.” 

Pode-se dizer que o direito de propriedade ilimitado acarreta a possibilidade de expansão ilimitada sobre uma área limitada de espaço, que cria o risco da concentração de propriedade privada sobre a terra com o conseqüente aumento da pobreza, o que com certeza irá afetar a eficácia dos direitos humanos fundamentais.

Disso decorre que para que se possa assegurar os direitos humanos, para que as pessoas possam ter uma vida digna, é necessário que lhes seja assegurado um patrimônio mínimo.  Para que não lhe falte o essencial e necessário a uma vida digna. Fato que, tem sido difícil de ser entendido, pois não se sabe ao certo o que é o mínimo, qual é o limite para se dizer que determinada pessoa não possui o mínimo necessário?
 
Em tudo que é contínuo e divisível pode-se tirar uma parte maior, menor ou igual, e isso tanto em termos da própria coisa, quanto em relação a nós; e o igual é um meio-termo entre o excesso e a falta. Por “meio-termo no objeto” quero significar aquilo que é eqüidistante em relação aos extremos, e que é o único e o mesmo para todos os homens; e por “meio-termo em relação a nós” quero dizer aquilo que não é nem demasiado nem muito pouco, e isto não é único e o mesmo para todos. 

Com relação ao que o meio-termo significa para os seres humanos, pode-se entender, então, que é aquilo que não é nem muito, nem muito pouco, fato que enseja uma subjetividade muito grande, que é inerente ao próprio conceito de vida digna . Necessário, portanto, que se estabeleçam critérios objetivos para se definir o mínimo. A possibilidade de existir um patrimônio mínimo, ajuda a extinguir ao menos em parte a desigualdade, e confere o direito à razoabilidade de vida daqueles que têm menos e necessitam mais.  Não se trata de igualar os homens, pois não se pode ignorar que uns são diferentes dos outros, e ignorar essa diferença é afastar a existência autônoma que os homens possuem.  E, esses critérios devem se  delimitar no menor mínimo, que é a moradia, o alimento, a satisfação das necessidades mais elementares.

A vida e a estrutura da sociedade não estão separadas do patrimônio. Mas, todavia, nessa esfera patrimonial, devem ser considerados valores sociais que recaem sobre a titularidade do patrimônio, reconhecendo-se, por fim, que as coisas, como o patrimônio, não podem ter um fim em si mesmas.  As coisas devem servir ao homem na satisfação de suas necessidades.

5. Considerações finais

Dos conceitos e reflexões analisados pode-se extrair algumas considerações, as quais servirão de base para estudos e considerações posteriores. A primeira delas é a de que a dignidade é inerente ao ser humano, e se faz presente no mesmo quando o homem encontra-se em equilíbrio, satisfeito, com suas necessidades supridas. Ao passo que a falta de dignidade se faz presente toda vez que se afasta o homem de sua condição humana. Situação que raramente acontece por vontade própria, mas sim, pela imposição de um poder, seja ele de ordem econômico, político, cultural. E, que, arbitrariamente força o homem a sobreviver despido de humanidade.

Conceituar a dignidade humana e dizer onde a mesma pode ser encontrada é tarefa árdua, eis que permeada de subjetividades causais, temporais, culturais. Talvez, seja realmente mais fácil dizer o que não é dignidade humana. E, nesse aspecto não faltam argumentos para explicá-la. Pois a vida que se leva mostra de forma bem clara o que é para um e outro ser humano, sentir-se bem, sentir felicidade. E, por outro lado o que é a dor, o sofrimento. Por essa razão é impossível observar um mendigo morando sob um viaduto, sentindo frio, fome, abandono; uma criança ou um idoso sem ter onde abrigar-se dos medos da noite e dos flagelos do corpo, e imaginar que não estão sofrendo (talvez, nem eles mesmos saibam o quanto sofrem).

Pode-se questionar então: será que as pessoas que dormem no chão frio, e tem como teto as estrelas, que reviram lixos a procura de alimentos, que vêem seus filhos morrerem de fome, são homens?   

Todos diriam que não, que ao se encontrarem nessa situação já perderam sua condição humana, pois comportam-se como animais, como seres desprovidos de razão ou sentimentos. Entretanto, basta que se olhe para o lado para perceber que existem aos milhares. E, que apesar de todas as normas de proteção à dignidade humana, tanto nacional quanto internacionalmente elaboradas, constata-se a não efetivação da proteção assegurada, que se prolonga indefinidamente.

Efetivamente, não se protege a dignidade humana, muito embora já tenha sido devidamente fundamentada. Ao que parece, “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justifica-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político” .

Não se pode mais fazer uso da “cegueira branca” para não ver aquilo que está posto na sociedade brasileira. Pois, a cegueira é uma defesa psicológica contra o sofrimento que o desamparo provoca. A negação da realidade significa a negação que os fatos apresentam.  Enfrentar o desamparo significa a angústia de sentir que não se tem defesa que proteja do terror imposto pela situação de desumanidade na qual “sobrevivem” inúmeros brasileiros.

Torna-se necessário, então, que se estabeleça uma diferenciação entre as necessidades falsas e as necessidades reais, para que não se desvie o atendimento preferencial das necessidades vitais, como a moradia, o alimento, a saúde. E, se veja que aquilo que se tem como normal, como a fome e a miséria da população, é, na verdade uma anomalia do sistema social. Já que a terra, fonte de abrigo e alimento, foi transformada em “mercadoria”, passando a ser exclusividade de quem pode adquiri-la. 

Assim, a função social da propriedade passa a integrar o conteúdo dos direitos humanos que garantem a dignidade da pessoa humana na conquista da cidadania, que passa a tornar legítimo que o exercício do direito sobre o bem terra, que possuem os proprietários, não impeça as necessidades vitais daqueles que não o são.   
 
Quando se trata de direitos sociais ou direitos fundamentais, direitos humanos de modo geral, compreendidas as garantias de moradia, saúde, educação, que são pressupostos do Estado Democrático de Direito, vários aspectos são impostos aos operadores do direito. E, é no poder judiciário, como última instância de poder, que se busca o cumprimento dos mesmos. Pois o Estado Democrático de Direito, deveria existir para assegurar garantia de sobrevivência à pessoa humana dentro da sociedade.

Nesse contexto, tem-se como principal causa da crise e inoperabilidade do poder judiciário a passividade causada pelo “senso comum teórico dos juristas”.  Que faz com que se tente resolver os problemas  típicos do Estado democrático de direito interpretando-o como se ainda fora um Estado Liberal. Falta ao jurista a hermenêutica adequada da Constituição. A constituição precisa ser compreendida. Falta, aos juristas a visão do todo, do direito como fenômeno social, falta ao jurista ser um pouco sociólogo, historiador, antropólogo, ser um pouco filósofo, da forma que esclarece Stein:

[…] O filósofo não pode repousar sobre afirmações absolutas, mas deve, com fidelidade constante, refazer criticamente suas convicções. Toda afirmação dogmática é precária e a honestidade do filósofo reside na sua capacidade de manter, pela consciência reflexiva, a abertura para o ingresso iterador até às condições de possibilidade[…] 

Esclarecendo que juristas são todos os profissionais do direito que de uma forma ou de outra interferem ou tem acesso a esse processo. Não são apenas os juízes que julgam os casos concretos, mas também os promotores públicos, os defensores públicos, os advogados, os doutrinadores, os docentes, os notários, os registradores, todos que, de alguma maneira, possam apresentar soluções concretas para os problemas da sociedade na qual estão inseridos. 

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